O Rio de Janeiro é muito mais do que um estado diverso, tanto em termos culturais, como em suas paisagens. É um território que, em sua topologia física e sociológica, manifesta com agudeza especial o modo como o Brasil se (des)articula: pela via do abismo, mais do que da diferença. Diante dos abismos, a maravilha beira o horror, o topo beira a queda. E os extremos são tão radicais que muitas vezes se perde de vista as tantas diferentes trilhas e voos de subidas e descidas sinuosas. Se, por um lado, os clichês e estereótipos de imagens produzidas no Rio de Janeiro inundam com força todo o imaginário nacional, por outro lado, essas representações também ofuscam todo uma gama de nuances e complexidades que compõem as vidas ordinárias em seus gestos cotidianos, lutas e sonhos.
Os muitos cinemas que hoje circulam em festivais, cineclubes, universidades e mostras como essa, a VI Mostra Sesc de Cinema, desafiam tanto os cartões-postais, como as apresentações sensacionalistas da precariedade que reinam nos espaços mais hegemônicos de circulação do audiovisual. O conjunto de imagens e sons que recebemos nessas aproximadamente 60 horas de produção audiovisual com as inscrições de cerca de 170 realizadoras e realizadores retrata ou mesmo inventa lugares instáveis e nuançados que reagem à caricaturização dos extremos. Nossa seleção final apresenta um conjunto de filmes que se situam entre a queda e o salto. Em defesa da complexidade, escolhemos, sobretudo, curtas, médias e longas que sinalizam algum tremor nas percepções mais consensuais e pacíficas do território. Nessa busca, três eixos motivaram com mais força o nosso olhar: a coletividade, a história e a poesia.
Coletividade e história são, sem dúvidas, dois termos que se complementam. Em nossas escolhas, tentamos resistir à tendência (absolutamente majoritária entre as inscrições de filmes de ficção) de construções de narrativas baseadas em um indivíduo sem embate concreto com o contexto social que o circunda. Convocaram nosso olhar justamente filmes que conectam as trajetórias individuais com o território, seja vinculando as personagens com lutas sociais ou contextos os mais variados de convívio, como circuitos de lazer, artísticos ou religiosos. É ao fazer a ligação dos indivíduos com os coletivos que os percebemos – muito além dos narcisismos e sentimentalismos – como sujeitos históricos. Seja no documentário ou na ficção, destacaram-se os filmes que traçam essas ligações entre o indivíduo e o comum ao buscar efetivamente a história ao mobilizar arquivos e elaborações da memória.
Qual pode ser o valor e a especificidade do cinema em um mundo em que tudo é filmado o tempo inteiro? Qual pode ser o valor e a especificidade do cinema em um mundo em que a produção de imagens é tão contínua e automatizada que já não as vemos enquanto tais, mas as assimilamos como se fossem transmissões diretas e transparentes da realidade? É a poesia que faz do cinema um campo de apresentação de uma distância em relação ao mundo como ele é. É a poesia que faz do
cinema um campo de apresentação do mundo em movimento, mostrando, antes, o que poderia ser. O trabalho sobre a linguagem exprime que há escolhas e intenções nas maneiras de enquadrar, encenar, relacionarse com as pessoas e montar. A poesia é o que faz do cinema um campo de invenção e não de mera representação imediata da realidade. Ora, nada mais óbvio do que uma mostra de cinema ter como crivo de análise a força poética dos filmes. Será?
Nas conversas curatoriais, ficou muito nítida nossa tendência automatizada de valorizar a importância das temáticas em si, deixando de lado a importância política da linguagem. A urgência de comunicar certas causas, muitas vezes se sobrepõe à valorização de um trabalho poético. No entanto, sobretudo depois da pandemia, que com as lives e reuniões on-line radicalizou a percepção do audiovisual como campo de transmissão direta da realidade, pareceu que afirmar o cinema como campo de invenção do mundo também é algo a ser urgentemente defendido. O ato de projetar e ver junto imagens e sons que nos distanciam do mundo como ele é, para vislumbrarmos o que poderia ser, é o que constitui a possibilidade de uma imaginação coletiva. Nada mais poderoso para abalar o presente e vislumbrar os possíveis caminhos da história.
Escrevo no plural porque essa curadoria é o saldo de conversas, é o que resta das tantas afinidades e também dos desencontros entre as diferentes perspectivas da equipe que pude compor junto ao Sesc RJ. Espero que esse texto possa refletir rastros luminosos das perspectivas de Leandro Luz, Wellington Barbosa, Lethicia Cabral, Sidnei Carvalho, Sidney Navarro e Elane Rezende, trazendo suas experiências que surgem do trabalho em diferentes zonas da capital carioca e também nos municípios de São Gonçalo, Campos dos Goytacazes, Teresópolis e Petrópolis. Esperamos que as sessões presenciais suscitem novas conversas. Que o ver junto seja semente de elaborações críticas capazes de abalar a lógica do abismo e colaborar para a criação de novos laços e caminhos onde só se vê a possibilidade do salto exasperado ou da queda brusca.
Maria Bogado – Curadora externa convidada / Sesc RJ